A Bica à Gil
- Jorge Monteiro
- 30 de jul.
- 2 min de leitura
No Largo do Saltão, em Santana, havia um café que era quase uma extensão da própria rua - meio porta de entrada, meio sala de visitas da aldeia. O café era do Sr. Gil e da D. Leonor, e quem por lá passava sabia bem: ali servia-se a “bica à Gil”.
O Sr. Gil tinha uma vaidade discreta - a justa - no café que tirava. Não era um café qualquer. Era aquele café, tirado à medida, com o gesto certo e o olhar atento à cor, ao cheiro, ao creme que se formava. Era o tipo de café que sabia a coisa bem feita. Mas o ritual não ficava por aí. Quase sempre, a bica vinha acompanhada de uma “especial” - aguardente velha, da boa, servida em copinho pequeno, só para aquecer o peito e a língua.
“Uma bica à Gil… e venha lá a especial”, dizia-se, como quem pede o habitual. Não era um pedido, era quase uma senha. O Sr. Gil sorria de lado, como quem ouve uma música conhecida, e preparava o par como se fosse uma fórmula mágica. E, de certa forma, era. Aquilo aquecia a alma, sim, mas também ligava as pessoas: os habituais, os de passagem, os que vinham ver a bola, os que só vinham ver gente.
Lá dentro do café, cabiam histórias, risos, promessas e até uns silêncios pesados. A D. Leonor, com um jeito sereno mas firme, equilibrava tudo - contas, mesas, humores. E o Sr. Gil lá estava, atento à máquina e à clientela, sem pressas e sem poses, servindo o que hoje se guarda com saudade: um café como já não se faz, e uma especial como já não se serve.
Décadas passaram, mas para quem provou aquela combinação sagrada, o sabor ficou. O Largo mudou, o tempo andou, mas a memória da “bica à Gil” ainda mora ali, naquele intervalo entre um café quente e um gole de aguardente, onde o passado sabe a presença.

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