A Face Romana de Santa Olaia
- Jorge Monteiro
- 7 de ago.
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A face romana de Santa Olaia (Figueira da Foz, Portugal) – uma leitura possível a partir da cultura material
Embora revele uma notável longevidade de ocupação, Santa Olaia é sobretudo conhecida pelos testemunhos da Idade do Ferro. Contudo, os restantes ciclos vivenciais são de igual importância para a compreensão da sua estratégia de afirmação regional ao longo do tempo. Neste caso e com base na revisão da documentação e espólio procedente das escavações arqueológicas realizadas, procura‑se compilar os elementos referentes à ocupação romana do local propondo, simultaneamente, uma narrativa de enquadramento. A análise dos dados reunidos parece indicar uma ocupação persistente desde época republicana aos inícios do século VI marcada, porém, pela noção de transfiguração cíclica do sítio. Atendendo às diferenças observadas ao nível do volume e qualidade do registo arqueológico, apresentam‑se potenciais linhas de interpretação explicativas das alterações de natureza funcional e relevância deste emblemático sítio do estuário do Mondego.
Em finais do século XIX Santa Olaia entra para os anais da arqueologia peninsular, celebrizando‑se pelos vestígios da Idade do Ferro de pendor orientalizante descobertos por António dos Santos Rocha. A excepcionalidade e superior estado de conservação dos níveis mais antigos do arqueossítio contribuíram, de certo modo, para ofuscar as evidências das ocupações que os sucederam. Porém, a importância da estação deve ser apreciada, justamente, na sua dimensão holística e no seu percurso singular ao longo dos últimos três milénios.
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O presente trabalho procura dar destaque aos elementos que se reportam a um dos períodos pós‑sidéricos menos conhecido – o romano, tendo por base a análise documental e a revisão do espólio das diferentes intervenções aqui desencadeadas até à actualidade.
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Situada a 13 km da foz, na margem direita do regolfo do Mondego (um estuário com forte dinamismo geomorfológico), Santa Olaia compromete a sua estratégia de afirmação político‑económica com a transfiguração do próprio paleo‑estuário. Os dois percursos – o do sítio e o da paisagem – são indissociáveis, sendo as suas circunstâncias naturais ditadas pela evolução geomorfológica daquela bacia hidrográfica. Trata‑se de uma pequena colina, de configuração elipsoidal, que não ultrapassa os 25 m de altitude, a despontar na extremidade de uma cordilheira calcária que se projecta de Noroeste nos campos aluvionares, precisamente na intercepção do Rio de Foja no Mondego. Do topo aplanado, o relevo pendia moderadamente para Norte (antes de ter sido cortado pelas sucessivas estradas). Nas vertentes meridional e ocidental, o terreno é bordeado por penhascos abruptos, separando‑se assim do monte fronteiro do Ferrestelo, orograficamente mais destacado. Nesta região, o processo de sedimentação holocénico converteu em terrenos aluvionares o que seria no I milénio a.C. uma ampla baía, na qual o sítio emergia sob a forma de ilha. Desta forma, o antigo estabelecimento fenício aninhado no interior do estuário, a curta distância da margem, controlaria discretamente o curso inferior do rio, proporcionando boas condições de abrigo às embarcações marítimas que, durante séculos, aqui puderam fundear. A magnitude desta função portuária terá mesmo adquirido inflexão toponímica no termo Angliata (de Anguluata = zona de ancoradouros) que na Alta Idade Média designava a área de Santa Olaia. Actualmente, o monte, propriedade privada da Quinta da Foja, desponta entre arrozais, encimado pela capela do século XVIII, encontrando‑se as ruínas acessíveis ao visitante.
É nas Memórias de Santos Rocha, pioneiro na exploração arqueológica do sítio, que se documentam as primeiras e mais detalhadas anotações fidedignas da recolha de vestígios romanos no monte. Num registo de rara objectividade para a época, o arqueólogo deixa-nos uma descrição minuciosa e lúcida das suas observações de campo (perceções sensoriais e gestos), respectivas impressões e conjecturas. Na explicação das escavações que desenvolveu na plataforma superior do outeiro, na viragem do século XIX para o XX, refere que o terreno era coberto por uma camada superior de espessura variável (0,30 m a 1 m) “de cor escura, muito carregada de carvões vegetais e restos de cozinha” acrescentando expressivamente que nesta “os vestígios romanos eram abundantes”. De seguida passa à análise sequencial das diversas fases ocupacionais identificadas pela ordem inversa da sua formação (estação medieval, estação luso‑romana, 1.ª, 2.ª e 3.ª estações pré‑romanas da Idade do Ferro e estação neolítica). No volume das Memórias condensam‑se em três páginas as referências aos horizontes históricos intervencionados. Relativamente à estação luso‑romana é interessante notar que a faz corresponder a um “depósito, em que se acham intercalados os muros medievais”. Ou seja, contrariamente às restantes etapas (vinculadas a níveis de edificação) a fase romana assume mera expressão sedimentar, sem a correspondente malha de estruturas. A única construção que o investigador arrisca associar a este momento é uma “sepultura de forma ligeiramente trapezoidal, feita de pedras lavradas e ajustadas sem cimento algum”. Nela, conservavam‑se os restos de indivíduo adulto em decúbito dorsal, com os braços ao longo do corpo e que fora atingido na parte da cabeça pelos alicerces medievais “indicando assim que o depósito mortuário era mais antigo”. Esta sepultura permanece, até ao presente, como único ambiente funerário antigo escavado no topo do outeiro, ao qual se junta uma inumação isolada de Época Moderna, levantada na década de 80 e a referência à necrópole medieval denunciada pelos “numerosos fragmentos de ossadas humanas, dispersos na terra, junto à capela”. Em baixo, na vertente setentrional do outeiro, foi ainda detectada uma segunda sepultura, perto da antiga estrada nacional 111, interceptada aquando dos trabalhos preparatórios para a construção do troço de via‑rápida em 1993. No interior da estrutura funerária, delimitada por lajes calcárias, exumou‑se um indivíduo masculino cujos restos antropológicos se encontram em depósito no Museu Municipal Santos Rocha. Note‑se que a tipologia destes dois sepulcros é idêntica à que o mesmo arqueólogo apresenta para algumas estruturas da necrópole vizinha localizada no monte do Ferrestelo. Importa lembrar que, antecedendo a descoberta de Santa Olaia, Santos Rocha encontrara a cerca de 600 m para nascente, na quinta do Ferrestelo, uma necrópole de inumação já quase destruída por uma saibreira em funcionamento. O autor identificou e escavou algumas sepulturas, construídas tanto em “lajes brutas” como em “telhas romanas” (tegulae), duas das quais integraram o museu primitivo e ainda incorporam a exposição actual. (...) Revendo a sua opinião inicial, o arqueólogo acaba por interpretar o sítio com um espaço cemiterial preexistente que continuara a ser utilizado em época romana. Tudo indica que esta necrópole corresponda ao “antigo cemitério tardo‑romano” localizado mais tarde por Victor Guerra no estudo do traçado da nova variante da estrada nacional 111, entre Montemor‑o‑Velho e Santa Olaia.
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Recentrando a atenção no depósito luso‑romano, dá‑se nota do espólio reunido, nomeadamente abundantes telhas e telhões, fragmentos de grandes e pequenos vasos, pregos de ferro, fragmentos de vasinhos de vidro, objectos de bronze não especificados e numismas – “pequenos bronzes de Juliano e um mediano bronze de Teodósio”. No intuito de balizar este horizonte arqueológico Santos Rocha aponta ainda a ausência de cerâmica dita “aretina”, daí concluindo que a romanização fosse posterior ao século II. (...) Finalmente, em conjunto com os referidos materiais, assinala‑se a recolha de “bases de coluna muito deterioradas, indicando um edifício importante, provavelmente um templo”.
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Assim sendo, pese embora se haja recolhido espólio cerâmico de cronologia romana, não foi possível identificar estruturas desta época. Refira-se, que no caso das intervenções realizadas no topo do outeiro, os artefactos romanos procedem essencialmente de níveis de formação medieval. Já na zona ribeirinha, na base da encosta Norte, o mesmo tipo de material procede de um depósito sedimentar aparentemente formado entre os séculos II e I a.C., e que cobre os níveis de abandono das estruturas da Idade do Ferro identificadas nesta área.
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Face à exiguidade ou ambiguidade dos testemunhos estratigráficos de época romana identificados em Santa Olaia, é na análise da cultura material que reside a melhor via de aproximação à ocupação do local durante este período histórico. Desta feita, propiciado pelo projecto de investigação em curso, o trabalho desenvolvido consistiu na compilação e estudo de espólio romano da estação que se encontra em depósito no Museu Santos Rocha, procedente tanto das intervenções antigas realizadas pelo arqueólogo figueirense como das campanhas mais recentes dirigidas por uma das signatárias. O conjunto reunido corresponde, maioritariamente, a material cerâmico, incluindo cerâmica fina e utilitária e cerâmica de construção. No caso da cerâmica de construção, às referências antigas, soma‑se a recolha de material diverso (tegulae, imbrices, tijolo de quadrante e lateres) um pouco por todo o planalto superior. A restante cerâmica abrange produções de diferentes épocas, desde o período republicano ao baixo império, revelando distintas pautas em termos de volume e local de exumação (planalto superior e zona ribeirinha).
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Constituindo uma amostra modesta no seio do espólio da estação, o conjunto das produções de época republicana é fundamentalmente constituído por artigos importados. Englobam‑se no mesmo horizonte cronológico exemplares de recipientes anfóricos, cerâmica de produção ibérica e cerâmica de verniz negro italiana, procedentes do topo do outeiro e da base da encosta norte.
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Todos os elementos recuperados apresentam as superfícies revestidas por aguada espessa de tonalidade muito clara, quase branca ou bege‑amarelada. As pastas, de tom vermelho a alaranjado, revelam‑se compactas embora grosseiras ou granulosas, com abundantes desengordurantes, destacando‑se a presença de quartzo e a inclusão regular de partículas negras de origem vulcânica acusando assim, de certa forma, a sua presumível origem na Campânia.
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Neste sentido, parece não só estabelecido o alvo cronológico da cerâmica da fase romana‑republicana de Santa Olaia como o seu eventual contexto de referência – a expedição de Décimo Júnio Bruto. É igualmente interessante verificar que, contrariamente a outras áreas da costa atlântica, na região de Lisboa não se confirma a presença de produtos da esfera itálica nos finais da Idade do Ferro, nem tão pouco os mesmos ingressam no fluxo de produtos púnicos. Ou seja, a sua ocorrência neste espaço, conjuntamente com outros produtos do Círculo do Estreito (cerâmica tipo Kuass) dá‑se já em plena fase romano‑republicana. Sendo igualmente de sublinhar a já notada precocidade da ocupação romana de Olisipo face à do Algarve que se reportará apenas ao último quartel do século II. a.C..
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Desta forma, a colecção de Santa Olaia, compatível com o kit cerâmico associado às forças militares romanas, vem compor o quadro evocativo da presença republicana neste território. Torna‑se manifesta a vinculação do sítio à movimentação de tropas no vale do Mondego, possivelmente durante as campanhas do Galaico. Ou seja, percebe‑se que na região o primeiro contacto com o mundo romano, aparentemente, só se consuma por intermédio deste programa militar.
Em parte, sob influência da opinião expressa por Santos Rocha, tem‑se assumido que a ocupação de Santa Olaia tenha sido interrompida entre os séculos I a.C. e III d.C. dada a presumível ausência de materiais enquadráveis naquele hiato cronológico. Para o autor a romanização do outeiro de Santa Olaia ocorrera após o século II, tendo em conta o facto de não ter reconhecido a presença de produções finas “aretinas” (itálicas), mas também pela recolha de moedas de Juliano e Teodósio. O suposto abandono do local em finais de época sidérica tem sido atribuído às alterações geomorfológicas do leito do rio que, por sua vez, teriam vedado a possibilidade de acostagem de naves de grande calado neste sítio, sendo o seu porto substituído por um provável ancoradouro localizado em Maiorca.
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Ainda que presumidos, os contextos tardo‑antigos de Santa Olaia eram, até ao momento, pouco ou quase nada conhecidos. Para além das moedas de Juliano e Teodósio referidas por Santos Rocha, não se apresentavam outros testemunhos que pudessem fundamentar convenientemente a noção defendida de que a ocupação romana do outeiro ocorrera após o século II. Só nos últimos anos, foi possível ir descortinando e juntando todo um conjunto de materiais e contextos estratigráficos que agora, depois de uma análise circunstanciada, testemunham um tempo centrado entre a segunda metade do século IV e a primeira metade do século VI.
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A partir dos distintos testemunhos mencionados apresentam‑se então os dados que nos podem fornecer pistas adicionais acerca da ocupação e dinâmica comercial de Santa Olaia durante o período tardo‑romano. Começamos por destacar o conjunto de cerâmica fina importada constituída por oito exemplares em terra sigillata africana (TSA) e outros cinco indivíduos de terra sigillata focense (LRC).
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Os elementos que se começam a compilar, mostram claramente que esta região do Baixo‑Mondego por intermédio destes sítios implantados junto ao litoral atlântico revela padrões de comercialização semelhantes aos que se verificam em latitudes mais meridionais ou no noroeste peninsular, assistindo‑se à continuidade das importações do Mediterrâneo Oriental adentro o século V e primeira metade do século VI. A manutenção ou reactivação dos circuitos de distribuição parece ter sido uma realidade através dos rios navegáveis até, pelo menos, os meados do século VI.
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Dadas as actuais circunstâncias da investigação, o mobiliário arqueológico afigura‑se como o principal guia para delinear a narrativa da ocupação romana de Santa Olaia. Da leitura dos restos materiais sobressaem três momentos, três fases ou três faces, dentro deste amplo ciclo temporal. Momentos estes que se adivinham atravessados por uma profunda reformulação e adaptação da estação e do seu modelo de funcionamento no quadro do estuário do Mondego face às rupturas operadas na conjuntura política global. Tal como fica expresso no seu padrão associativo e cronológico, o conjunto artefactual enquadrável na fase romano‑republicana poderá vincular a estação a um episódio histórico específico – a incursão do procônsul da província Ulterior ao longo da fachada atlântica em 138 a.C. No seguimento deste processo de fulgor expansionista, os corredores fluviais terão funcionado como bases estratégicas de irradiação, fixação e controle territorial. À semelhança do que sucedeu no vale do Tejo, também o vale do Mondego terá proporcionado à facção romana uma via intermédia de penetração no hinterland. E deste modo, perante o cenário de instabilidade política ganham especial realce as características naturais do outeiro, a escassas 8 milhas (72 estádios) da costa. À capacidade de controle efectivo do rio, somam‑se as condições de atracagem que permitem que o local pudesse ser convertido numa base naval de auxílio às campanhas ofensivas. Esta associação à movimentação de tropas no contexto da campanha de Décimo Júnio Bruto, sugerida pelos materiais, permite conjecturar que em Santa Olaia, à imagem de Lisboa, se instalasse um posto de retaguarda, destinado ao apoio na progressão dos contingentes militares. No entanto, não se deverá descartar a possibilidade dos testemunhos estudados se enquadrarem num momento imediatamente subsequente, dentro da segunda metade do sec. II a.C., em que se regista a necessidade de manutenção de portos activos e rotas dinâmicas de abastecimento aos exércitos que continuam operando no interior dos principais vales fluviais depois da campanha de pacificação de 138 a.C. Nesta época, pese embora conservasse plena navegabilidade até Coimbra (Aeminium), localizada no fundo do estuário, o rio já não correspondia à ampla bacia da I Idade do Ferro. Durante a II Idade do Ferro o progressivo assoreamento foi empurrando e retraindo o vale aluvionar em direção ao mar. Por esta altura o delta fluvial cercaria Santa Olaia, fazendo com que a navegação tivesse de ser dirigida de forma cuidadosa pelos canais principais, evitando as zonas entremarés. Desta forma, atendendo à localização do naufrágio de Arruelas (Maiorca), ganha consistência a hipótese de o navio, no seu percurso para Santa Olaia, ao desviar‑se do canal principal ter encalhado nos baixios de areia sedimentar precipitados pelo rio de Foja. E, assim sendo, os dois sítios arqueológicos enlear‑se‑iam na mesma rede de circuitos institucionais de apoio ao exército romano. Afigura‑se, portanto, provável que no último terço do século II a.C. a área portuária de Santa Olaia, pela sua capacidade de controle e domínio do Mondego, gozasse de protagonismo no âmbito da estratégia de gestão territorial e do apoio logístico à frota republicana. Curiosamente esse dinamismo parece esmorecer no período imperial. É interessante notar como os testemunhos desta fase são meramente vestigiais. Ou seja, sem que se tenha dado o abandono do outeiro, a ocupação transfigurou‑se de uma forma peculiar, saldada na redução da sua expressão arqueológica. Parece certo que com a pacificação e estabilização do território e a reorientação dos circuitos comerciais, em função do desenho da nova administração provincial, o recorte geográfico da estação tenha perdido interesse. Observando‑se a sua substituição por outros locais mais favoráveis, como parece ter sido o caso de Maiorca. De todo o modo, a importância simbólica ou prática (portuária) do local impediu que o mesmo se ermasse por completo. Ficam ainda por encadear alguns vestígios desgarrados como é o caso do forno de produção de cerâmica ao largo do Ferrestelo e os vários contextos funerários escavados nos finais do século XIX e XX que poderão ter conexão a esta fase. Não será inclusive descabido pensar‑se, em sintonia com o que defendeu Santos Rocha, que o domínio que a colina exercera no espaço circundante fosse agora assegurado noutro plano, eventualmente sob a tutela de um templo ou espaço sagrado, missão que ainda hoje continua a cumprir. Paradoxalmente, após esta etapa de penumbra e desconhecimento generalizado acerca dos seus moldes de ocupação, o processo de desagregação da estrutura administrativa clássica parece trazer um renovado folego a Santa Olaia. De novo, perante uma conjuntura hostil, de turbulência política, social e eco‑ nómica e crescente ameaça, associada à decadência do império, o perfil natural de Santa Olaia ressalta no quadro do domínio do estuário. A forma como se integra no rio torna este lugar apropriado para acolher em segurança as cargas marítimas e funcionar como posto estratégico dentro da rede de povoamento e de redistribuição comercial. Surgem, pois, testemunhos do retomar do acesso aos principais mercados medi‑ terrâneos, sinal de uma renovada pujança económica do local. Esta aparente revitalização do sítio pode ser fixada a partir do século IV, mantendo‑se pela Antiguidade Tardia e Alta Idade Média.
Presume-se que nesta altura o local tenha adoptado um modelo de desenvolvimento assente no controle da entrada no vale navegável do Mondego, em concomitância com a dinamização da actividade portuária parecendo retomar, em certa medida, a função de entreposto comercial. Não deixa de ser irónico que passado mais de um milénio da sua fundação por gentes orientais, a Santa Olaia do século VI se volte a enredar e a estar novamente integrada numa rede de contactos que a ligam ao Mediterrâneo Oriental. Finalmente, é difícil ignorar que a filiação toponímica do lugar radica num episódio desta época – um martírio com palco em Mérida, na primeira metade do século IV, na sequência do édito de Diocleciano. A este respeito, embora não seja possível constatar a consagração de um culto em período paleocristão o mesmo não deverá ser inteiramente descartado. Em síntese, a cultura material de época romana de Santa Olaia traduz, na cadência das suas ocupações, o pulsar da estação. Destaca‑se, do que fica expresso, um sítio que prospera ciclicamente na adversidade, que serve os períodos conturbados e de instabilidade social, que renasce quando é preciso assegurar um controle de proximidade do curso do rio e garantindo a segurança do que se encontra a montante – as estruturas de carácter urbano, os campos, as serras... É nesta dialética que se antevê a lógica de funcionamento deste modesto e atrevido outeiro a despegar‑se das faldas calcárias, de face voltada para ao Oceano.
(excerto do estudo da Dra Maria Isabel Sousa Pereira, publicado na Ophiussa - Revista do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Maio - 2021)

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