A utilização dos mamíferos no povoado da 1.ª e da 2.ª Idade do Ferro de Santa Olaia
- Jorge Monteiro
- há 17 horas
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Estudaram-se as faunas de mamíferos recolhidas contextos pertencentes à 1.ª e à 2.ª Idade do Ferro das escavações realizadas pela Dr.ª Isabel Pereira, nas décadas de 80 e 90 do século XX, no importante povoado de Santa Olaia (Figueira da Foz). Os estudos taxonómico, osteométrico e tafonómico realizados permitiram várias conclusões sobre a economia alimentar verificada naquele sítio de pendor marítimo e mercantil, apoiadas em comparações realizadas com estações coevas do território português:
– Os animais domésticos são dominantes no conjunto faunístico analisado, com predomínio de gado bovino, seguido do caprinos e suínos, estando presentes, acessoriamente, o veado, o javali e coelho. A assinalável presença de restos de suínos pode explicar-se se se atribuírem essencialmente a javali, sobretudo no tocante à ocupação de época fenícia, dada a rejeição dos povos semitas pelo consumo de carne de porco. Esta interpretação, que não é possível demonstrar, dada a dificuldade na separação dos restos ósseos entre a espécie doméstica e a espécie selvagem, tem a apoiá-la a assinalável presença de veado, que partilhava o mesmo tipo de ambiente cinegético, associação que, aliás se verifica muitos séculos depois, em contextos semitas de época islâmica do território português.
– Destaca-se a importância dos bovinos, tanto no contributo alimentar incluindo, naturalmente, a produção do leite e produtos dele derivados, como em tarefas agrícolas, no transporte de pessoas e de mercadorias, sendo testemunho directo da estabilidade da população ali sediada na 1.ª e na 2.ª Idade do Ferro.
– Coloca-se a hipótese da exportação de carne para fora do povoado, uma vez que foi detectada no registo faunístico, nas duas etapas culturais, a ausência de algumas partes nobres de animais de grande porte, com maior valor alimentar, por oposição à abundância de outras partes de menor interesse, como crânios e segmentos distais dos membros anterior e posterior. Tal situação poderá conotar-se com a própria natureza predominantemente comercial do sítio, que funcionava como entreposto comercial, apoiando o comércio transregional ao longo da costa, por um lado, alimentado com as matérias primas oriundas das Beiras pela via da navegação do rio Mondego, especialmente o estanho.
– As práticas culinárias que foi possível entrever, com base no padrão de fracturação e outras marcas conservadas nos ossos, indiciam predominantemente a prática de cozidos e estufados, dado conduzirem ao aproveitamento integral das proteínas, incluindo o tutano ósseo. Suplementarmente foi comprovada a realização de grelhados e churrascos, pelas marcas de carbonização conservadas em alguns ossos.
– Alguns ossos ostentam marcas de calcinação, em resultado do intenso calor a que foram expostos, compatíveis com a sua utilização como material combustível, designadamente nos fornos metalúrgicos identificados num sector do povoado, aproveitando as gorduras e outros materiais orgânicos ainda conservados.
– Outros ossos evidenciam marcas de roedura nas extremidades, indício da presença do cão doméstico no espaço habitado. Aliás, a identificação de dois crânios incompletos, provenientes cada um deles de contextos da 1.ª e da 2.ª Idade do Ferro, sem que quaisquer outros restos do esqueleto tenham sido recolhidos, configura o aproveitamento deste animal em sacrifícios rituais, com a decapitação das cabeças, tal qual foi observado no povoado de Almaraz.
– Em termos comparativos, o espectro faunístico descrito em Santa Olaia, caracterizado pela presença dos animais domésticos acima elencados, configura situação idêntica à identificada em povoados similares, tanto da 1.ª e da 2.ª Idade do Ferro, dispostos ao longo do litoral atlântico, como também, para a 2.ª Idade do Ferro, no interior alentejano.
– Santa Olaia, como “lugar central”, a um tempo comercial e industrial, que era, redistribuía as matérias-primas oriundas do interior das Beiras, designadamente os minérios de estanho, que aqui chegavam pelo Mondego, por via da comércio fenício, daí retirando as correspondentes mais-valias. Do mesmo modo, existiriam, num aro mais próximo, pequenos povoados, por vezes de natureza familiar, que produziriam os recursos alimentares consumidos em Santa Olaia, provavelmente também eles objecto de exportação, como carne fumada ou salgada, tendo presente a escassez de segmentos anatómicos correspondentes às partes dos animais de maior interesse alimentar, aliás essenciais para a alimentação das equipagens envolvidas em tão longas e difíceis viagens marítimas.
(texto e foto retirados do livro Estudos Arqueológicos de Oeiras - volume 32 / 2003. Editor Científico: João Luís Cardoso)

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