Festa dos Rapazes | Ritual de Juventude e Liberdade
- Jorge Monteiro
- 16 de ago. de 2019
- 2 min de leitura
Atualizado: 26 de jul.
Entre as tradições mais singulares de Santana, uma das que mais profundamente marcou o imaginário local foi a chamada “Festa dos Rapazes”, assim designada na Enciclopédia das Festas Populares e Religiosas de Portugal. Esta celebração, outrora habitual, tinha lugar na noite de 2 para 3 de maio, quando a primavera se encontrava já desperta e os campos, ainda sob a brisa fresca dos últimos dias de abril, começavam a perfumar-se de giestas e promessas de colheita.
Com a cumplicidade da escuridão e o entusiasmo da juventude, grupos de rapazes percorriam os arredores da povoação em discretas incursões noturnas, dedicadas a um tipo muito peculiar de “furto simbólico”: retiravam carros de bois e alfaias agrícolas - arados, charruas, grades e cangas - dos pátios e eiras dos lavradores da zona. Embora tecnicamente um "roubo", tratava-se, na verdade, de uma brincadeira ritualizada, aceite pela comunidade como uma espécie de prova de coragem e astúcia.
Os objetos, cuidadosamente transportados ou arrastados em segredo, eram depois reunidos no Largo do Saltão, um dos espaços centrais de Santana. Aí se construía uma insólita instalação de arte popular: um amontoado quase escultórico de utensílios agrícolas, montado ao centro do largo, como se a própria terra, por uma noite, se rendesse ao espírito livre dos seus rapazes.
Este gesto, simultaneamente irreverente e simbólico, funcionava como um rito de passagem: uma noite em que os mais novos, à margem da autoridade e do trabalho, afirmavam o seu lugar na comunidade, desafiando as convenções com alegria e engenho. No dia seguinte, os proprietários reconheciam os seus bens e, entre sorrisos ou discretas reprimendas, tudo regressava ao seu devido lugar - sinal de que a ordem podia ser, por momentos, subvertida, mas nunca destruída.
Hoje, esta prática encontra-se adormecida na memória coletiva, evocada com nostalgia pelos mais velhos que ainda se recordam das correrias pela aldeia, do riso cúmplice e do silêncio partilhado. A “Festa dos Rapazes” permanece, assim, como testemunho de um tempo em que a juventude era celebrada com ousadia e imaginação, e em que até os utensílios do campo podiam, por uma noite, participar na festa.

Comentários